quinta-feira, 15 de setembro de 2011

JARINA E DOCA PREGO


 Era mês de julho do ano de 1995, já passavam das quatorze horas quando Jarina levantou cansada e sonolenta de sua sesta diária. Os quinze minutos de sono  que lhe revitalizava neste dia  não foi suficientes para recuperar-lhe as energias que gastou no período matutino com os afazeres domésticos.
Naquele dia, em especial, seu descanso foi interrompido pelo calor causticante que assolava a Vila do Cuía, lugarejo pequeno de poucas casas à margem esquerda do Barrento Rio Solimões, situada ao extremo norte da Cidade de Anamã, município encravado na Selva Amazônica.
Mesmo com a janela do quarto entreaberta, o mormaço era terrível, abafado, tornando o ambiente morno, sem ventos, não lhe deixando sestar tranqüilamente. Sua mania, como dizia seu marido Dorival, mais conhecido por  Doca Prego, referindo-se  ao gosto que tinha de deitar-se após o almoço, a fizera levantar aborrecida. Olhando o velho  termômetro que o compadre Chinó lhe dera na época  em que tinha sido candidato a vereador em 84, que jaz permanecia pendurado na parede de tábuas de louro bosta,  pintada com cal  tingida de verde, criando texturas manchadas, anunciava em seu bulbo térmico, 40 graus. Lá fora o sol escaldante denunciava o tempo quente   que assolava toda a região.
Jarina estava gravida de  dois meses,  era a quinta barrigada e as modificações em seu corpo já se acentuavam e o calor aumentava mais ainda,  sua agonia. Banhando-se refrescantemente por alguns minutos, aliviando seu corpanzil caboclo em transformação, lá  do banheiro que ficava no final do terreno a alguns metros da casa, grita ainda zangada para filha: “Preta... Pretinha... Traz a toalha...  A que está na janela do quarto... Vê se faz isso logo”.
 Num serelepe encanto de sua meninice, e, respondendo os reclames da mãe, com gestos de quem estava sendo  educada à moda antiga, Pretinha  responde:
  - “Tá bom, mamãe... Já estou levando”.
Abriremos um parêntese, para falar um pouco desta jovem mãe de quatro filhos:
- Doralice, conhecida por Pretinha, com onze, Francisco o Tico, com dez, Raimundo, o Mundico  com oito e Dorval,  o  Val, com cinco anos. Jarina tinha quatorze primaveras quando engravidou pela primeira vez de Doca Prego, que já contava com a idade de dezessete. O casório foi engendrado por seus pais. A contra gosto de dona Nila, mãe  de Jarina. O pai de Doca, dono de um terreno na Vila em que hoje moram, deu-lhes a posse da mesma. Jarina e Doca transferiram-se de Anori, Município onde nasceram, e fincaram raízes no Cuínha.           
Jarina, aos treze anos tornara-se uma “cunhã poranga” – menina moça – muito bonita, morena, 1,55 de altura, corpo esbelto, pernas bem torneadas, cabelos longos de cor castanho com mechas a realçá-los, olhos esverdeados, lábios carnudos e grossos,  nas silhuetas do rosto um leve tom natural de rósea carmim, fazendo um belo conjunto corporal. Cursava  o 4º ano do ensino fundamental quando deixou os estudos para se casar.
Na primeira gravidez Jarina teve complicações por não ter feito os exames do pré-natal. Tornando-se parto de risco. Pretinha nascera antes do tempo previsto e com peso abaixo do normal. Ficou no Posto de Saúde do Município por mais de três meses.                      
Durante a permanecia no Posto Médico da Cidade, Jarina e Pretinha recebiam todos os cuidados necessários que o Dr. Evandro, podia lhes dar, apesar dos poucos recursos que eram destinados pelo Executivo Municipal. Mesmo assim, Dr. Evandro,  procurava atender seus pacientes com muito carinho, dedicação e solidariedade. Gostava do que fazia, sempre que tinha um tempinho, proferia palestras no salão do Posto Médico sobre higiene pessoal, doenças sexuais, controle da natalidade e outros temas relacionados com a saúde dos ribeirinhos. Por seus préstimos recebia da população matreira,  respeito e consideração.
Durante os dias em que permaneceram internadas, mãe e filha, além dos cuidados médicos, tinham constantes visitas de seus parentes. Numa dessas visitas, no corredor, o Dr. Evandro não pode deixar de ouvir a conversa sem nexo dos dois avós paternos:
  Jita demais é esta cunhantã...Nem dá gosto de segurar... Será que esta pirralha jitinha vai viver – sentenciava a avó Nega, mãe de Doca Prego. Uma cabocla nativa sem qualquer instrução formal.
- Deixa de leseira,  mulher...  Tu não acreditas em Deus, não? Nossa netinha é miúda mais vai viver sim... Nossa Senhora do Carmo vai permitir... E vamos acabar com essa conversa fajuta. – Determinou seu Joaldo Maquiné, pondo fim no monólogo triste de sua esposa.
Dr. Evandro, educadamente, passa pelos dois, esboça um sorriso, deseja boa tarde, seguindo seu itinerário e mentalmente diz prá si mesmo: - Seu Joaldo está com toda razão.
Voltemos.
Iremos encontrar Jarina sentada embaixo de uma mangueira, onde corria uma leve e suave frescura vinda do rio, sentada num tronco de árvores que servia-lhe de banco, cosendo uma roupa de Doca.
 De vez enquanto resmungava com os gritos da meninada.  De cabeça baixa e entretida no que fazia, não notara  a chegada de seus pais. As crianças numa verdadeira algazarra de contentamento, ao avistarem seus avós, deixaram  a brincadeira de manja-pega, correndo  ao encontro dos velhos gritando:
- Mãe... Mãe.  É o vovô Vituca e a vovó Nila. – Legal!.. Bradou Mundico, pulando nos braços do avô.
- Eitâ curumim do beiradão!.. Tá comendo muito pirarucú com pirão de açaí?... Tu, tá pesado que só, né! – Sentindo o peso do neto, reclama com alegria e consentimento o velho Vituca,  senhor de meia idade acostumado na lida diária no campo e na pesca. Em  seu  semblante sereno mas encantador de homem simples, espelhava sentimento de grande generosidade e grande afeição por todos os seus, principalmente aos netinhos, aos quais tratava carinhosamente de moleques sapecas.                                                                                                                    
Em suas visitas à casa da filha, não esquecia de levar os mimos das crianças.
Em uma sonora ladainha, ouve-se numa só voz: - Bênça Vô,  Bênça Vó. Pegando nas mãos de cada um, os velhos abençoam-os em nome de Deus.
Dona Nila era o oposto de seu Vituca. Com ela não tinha meios termos, era ou não era. Quando gostava, fazia o impossível para agradar. Ao contrário, notava-se  uma expressiva apatia em suas atitudes. Não sabia perdoar os deslizes das pessoas. Colocava-se  acima de tudo e de todos. Nunca aceitou o casamento da filha. Do genro, nutria uma  verdadeira aversão. Fazia questão de afirmar que ia à casa dos seus netos, e se o Doca estivesse em casa, não lhe dirigia a palavra. Naquele dia ele não se achava em casa. Mesmo não gostando, perguntou por ele. Recebendo afirmativa de que estava na pescaria e só retornaria dia seguinte.
Jarina recebeu os pais com muito contentamento. Iria dizer-lhes do bebê que estava esperando. Só que não contava era que Pretinha se antecipasse  e falasse das boas novas para os avós:
- Vovó, a senhora sabia que mamãe vai ter outro filho? – Com olhar de espanto dona Nila indaga: - Quê historia é essa menina? Fez-se um silêncio total por segundos. Jarina  sentindo a curiosidade de sua mãe, interrompeu a filha, que se metera na conversa de adultos, com olhar reprovador, sendo bem entendida por Pretinha, responde:
 - Já estou com dois meses, mamãe. A senhora e o papai irão ganhar mais uma netinha. Quero que escolha o nome para ela. Atônitos e ao mesmo tempo felizes com a notícia, sentam repentina e sincronizadamente no banco improvisado embaixo  da árvore e ficam, dona Nila e seu Vituca, a pensar e olham-se com cumplicidade, ele catuca sua velha com o cotovelo, como que dissesse, fala tu?  -  Seu nome será:    Maria Serena – sentenciou dona Nila, com ares de superioridade.  – Como é? Indaga seu Vituca. –Maria Serena. Repetiu a matriarca, pondo um ponto final na conversa.
A tarde transcorria tranqüilamente e as crianças brincavam animadamente no terreiro. Mãe e filha foram preparar um lanche para todos. O velho  Vituca, sentindo o peso de sua idade, dominado pelo cansaço de ter remado mais de duas horas ficou ali sentado com o olhar fixo nas águas do caudaloso Solimões. Podia,  de onde estava,  visualizar o fervilhar de cardume de Branquinhas e Aracus que iam   rio acima,  num movimento frenético e constante, chamando a atenção dos botos tucuxis que saltitavam alegremente sobre eles, deleitando-se naquela  lauta pescaria.
Vamos deixar o velho Vituca com seus devaneios a pitar seu cigarrinho de palha e iremos encontrar Jarina e sua mãe em colóquio familiar  à beira do fogão de lenhas, fritando banana pacovã para comerem com o  café. O entendimento entre elas, era notado pelos risos entoados a cada anedota e/ou estória escabrosa que dona Nila gostava de contar.
Pela janela do jirau Jarina chama seu pai e  manda as crianças tomarem banho, ordenando a Pretinha que  fizesse o asseio correto dos pirralhos.
O sol no horizonte começava a fazer sua triunfal despedida
Sem que ninguém esperasse aponta  no quintal Doca Prego,  com um cesto de palha de tucum,  cheio de  peixes,  nas costas. Para alegria dos filhos que ao vê-lo,  gritam num cantarolar  de imenso contentamento:  – Papai... Papai chegou.... Correram em sua direção com afoito carinho, que só os pequenos demonstram com pureza d’alma, a quem lhes são queridos. 
No interior da casa, o silêncio à mesa se faz notar pelos presentes. Jarina levanta-se e vai ao encontro do marido.
Sobressaltada, da porta indaga: - O que aconteceu Doca?....Ora, homem,  tu só vinha  amanhã? Com  sacrifício no falar, esbofando um cansaço medonho  por ter subido o barraco com os peixes  nos lombos, assim mesmo, consegue responder com ternura:
- Meu bem... É que nós pescamos, em um só lance,  duzentos tambaqui e três milheiros de aracu.  Não precisando  que ficássemos lá até amanhã. Após ter tomado banho, e tirado o pitiú do corpo, Doca entra em casa e encontra à mesa os sogros. Para sua surpresa e dos demais, Dona Nila  levanta-se e com  voz autoritária, pede para que o genro sente-se ao seu lado, oferecendo-lhe uma xícara  com café. Tendo sido obedecida de pronto. Os  presentes se entreolham espantados , sem  entenderei o que acontecia. Em silêncio, todos ficaram por alguns momentos letárgicos com tal atitude.
Sabiam do desagrado da  velha por Doca. Ela não  escondia de ninguém   seus desafetos pelo genro. Estava tudo bem com ela? O que levara a agir daquela maneira?
Indagavam em pensamentos.
Intimada pelo olhar curioso e perplexo de todos, dona Nila começou a falar, com a sinceridade que lhe era peculiar:
- Doca, sinto muito  que a minha atitude em relação a você durante estes anos


todos tenham sidos de indelicadezas e asperezas. Hoje vejo o quanto fui ingrata contigo e com minha filha. Não quero ter em meu coração rancor ou magoa de vocês. Fiz questão de estar aqui para poder pedir-te minhas mais profundas desculpas. Calou-se por instantes, limpando  os olhos lagrimejantes ,  pigarreou um pouco e continuou:
-- Desculpas, mas, o que quero dizer, mesmo não querendo admitir, é que eu sempre gostei de você, sempre lhe admirei, durante esse tempo em que vinha aqui, dava-me uma vontade de falar o que só agora o faço com muita determinação e confesso que  todas as noites rezo à Nossa Senhora  Aparecida para proteger você em suas pescarias, assim como peço pela Jarina e as crianças. Mesmo sendo tarde, continuou a velha, e você não aceitando,  quero dar-te minha benção do fundo de meu coração
Em resposta, Doca beijou-lhe as mãos terna e carinhosamente. A alegria foi geral. Jarina resplandecia sua felicidade em ver sua mãe fazendo as pazes com seu companheiro. Em seu intimo agradecia ao bom Deus. Todos ao redor da mesa se postaram e antes de começarem o lanche, a pedido do senhor Vituca, rezaram.


 




























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